terça-feira, 16 de setembro de 2014

4806 - Êxodo

Colegas de JB Cardoso estavam presente na festa de lançamento 
do seus primeiro livro




O primeiro livro do jornalista JB Cardoso, lançado na loja Arte Som, na noite de 15 de setembro de 2014, reúne vários contos de leitura amena e agradável. O nome da obra, A Mulher do Zagueiro e outros contos já dá uma ideia disso. Mas a obra inclui contos menos divertidos e mais profundos, como esse que resume o que foi a vida de milhões de gaúchos do interior (inclusive do Vale do Caí) que mudaram-se para cidades grandes e industrializadas buscando melhores oportunidades de emprego e qualidade de vida. Muitos se deram bem nessa mudança, mas uma grande parte deles sofreu e perdeu muito ao tentar essa mudança.

Êxodo

ATO UM: 
Décio largou a enxada num canto do galpão, ainda com a poeira da capina, tirou o chapéu de palha, enxugou o suor da testa com o antebraço, e foi sentar-se ao lado do cinamomo, como fazia todas as tardes. Enquanto olhava o horizonte com as cores rosa e laranja do crepúsculo avistou Mirtes recolhendo as roupas do varal. Próximo a ela Bruno brincava com algum galho, dando asas à imaginação de seus cinco anos. Ficou meditando sobre a vida que levara e oferecera à mulher e ao filho até ali. Desde o casamento, foram morar agregados na fazenda onde ele conseguira emprego. Porém, ultimamente o clima não estava ajudando, e já ouvira o patrão falando que o salário daquele mês novamente poderia atrasar. A falta de chuva atrapalhava o cultivo da terra, diminuindo muito a colheita. Para não ficar no prejuízo o patrão acabava vendendo os produtos a preço de custo, e o dinheiro não era suficiente para honrar todos os compromissos. Na verdade até ali não havia faltado o que comer para ele e a família, assim como para os outros agregados, mas ele estava decidido a ir buscar uma vida mais confortável para si e a família. Avisou a mulher que havia resolvido mudar-se para Novo Hamburgo, próximo de Porto Alegre, onde morava um primo. Sabia por este primo que poderia trabalhar nas fábricas de calçados, que havia em grande número naquela cidade. Por enquanto ele iria sozinho ajeitar a vida e voltaria para buscá-los. Pediu para o patrão olhar a família por ele e num domingo chuvoso tomou o rumo do Vale do Sinos, com muitos sonhos no coração.
ATO DOIS: 
Décio entrou em casa ainda sentindo o nó na garganta. Olhou para a mulher que parecia ter envelhecido dez anos em dois dias. A dor da perda era irreparável. Sentou-se numa cadeira, e relembrou toda a luta que tivera desde a chegada em Novo Hamburgo. Foi recebido na casa do primo, que lhe conseguiu um emprego numa fábrica de calçados, bem como lhe havia dito antes. No início foi logo tentando se adaptar a uma rotina diferente àquela a que estava acostumado. Um dia inteiro dentro da fábrica, praticamente sem ver a luz do sol, lhe dava saudades da lida no campo aberto como tinha na fazenda. Suportou porque pensava na mulher e no filho, nas melhores condições que poderia lhes dar. Menos de um ano depois buscou a família. Alugou uma casa, onde colocaram os poucos móveis. Com a facilidade de arrumar trabalho, Mirtes resolveu trabalhar e foi admitida na mesma fábrica de Décio. Com o tempo, conseguiram comprar um terreno num loteamento recém aberto. Com o esforço de ambos, construíram uma pequena casa de madeira. A vila foi crescendo de forma desordenada. Em geral, gente como eles, vinda do interior, na busca de uma vida melhor. Mas também chegou outro tipo de gente, de má índole, sem os princípios básicos de convivência entre pessoas de bem. O casal trabalhando não conseguiu controlar o crescimento de Bruno, que acabou se envolvendo com marginais e traficantes de drogas. Nesta época também ocorreu uma forte recessão, da qual Décio não sabia a causa, que levou ao fechamento da firma onde trabalhava com a mulher. Sem emprego, ele seguiu um conselho do primo e passou a vender café na fila do INSS da cidade. Levantavam às duas da manhã, preparavam café, pastel e sanduíches que eram acondicionados em caixas de isopor, e Décio levava para a fila, onde muitas pessoas viravam a noite esperando atendimento. A venda era certa, e ele foi conseguindo o dinheiro desta forma, até o dia da tragédia. Chegou em casa de volta por volta das nove horas, e encontrou Mirtes preocupada com Bruno que ainda não retornara. Décio tentou acalmá-la, mas logo chegou a notícia: havia ocorrido uma briga de gangues, e Bruno fora atingido com um tiro. Quando chegaram ao hospital, já o encontraram sem vida. A dor da perda misturada ao sentimento de culpa por não ter acompanhado o crescimento do único filho acompanharam o casal durante o velório e o enterro. Agora em casa, rememorando tudo isso, Décio tomou outra decisão e comunicou a mulher: iria vender a casa e voltariam para o interior, em busca da paz que perderam na cidade. Era só isso que ele queria agora. Paz. Um bem muito maior ele perdera na cidade, mas este nunca mais seria recuperado. E num domingo chuvoso, um caminhão tomou o rumo do interior, com poucos móveis e nenhum sonho.
Conto extraído do livro A Mulher do Zagueiro, de JB Cardoso

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