quinta-feira, 17 de abril de 2014

3911 - A fisionomia de Balduino Rambo

Nascido em Tupandi, Balduino Rambo 
foi um dos maiores cientistas gaúchos

O dia 11 de agosto de 2.005 marcou a data centenária do nascimento do Padre Balduino Rambo. Falecido prematuramente aos 56 anos, em 12 de setembro de 1961, deixou  uma herança cultural e científica ímpar, tanto pela diversidade dos campos pelos quais transitou, quanto pela profundidade e originalidade com que os tratou. Não é aqui a hora nem a oportunidade para trazer uma biografia completa sua. Esta já foi escrita em várias ocasiões e outras tantas versões, umas mais  extensas e mais detalhadas, outras mais enxutas e mais sóbrias.
Propus-me a iluminar, na medida do possível, a personalidade do Pe. Rambo em alguns dos seus traços característicos e naquilo que ele oferece de peculiar. Nasceu no meio rural, no atual município de Tupandi, na época oitavo distrito de Montenegro, filho de um casal de colonos  descendentes típicos de imigrantes alemães. O ambiente profundamente  religioso na família e no meio social em que passou a infância e parte da adolescência, deixou nele traços inconfundíveis para o resto da vida. Digo mais. Serviram de fundamento e de baliza que imprimiram o rumo e o ritmo a toda a sua existência. O fascínio pela natureza no seu estado original, o bucólico do mundo rural, o épico dos fenômenos que moldaram a natureza em tempos primigênios, afloram constantemente na sua produção literária e científica ou irrompem como vulcões em momentos de arrebatamento. Mas a razão última, o motor existencial que imprimiu a sua vida um ritmo frenético, por vezes alucinante foi, sem dúvida, a fé religiosa despida de artificialismos e pieguices, herança do berço camponês despojado e frugal, mas prenhe de fé e calor humano.
Muito jovem ainda, no limiar da adolescência, o futuro padre jesuíta, literato, líder social, professor universitário e cientista de renome internacional, partiu para o seminário em Pareci Novo. Ao menino de 12  anos incompletos abriram-se então as portas do saber religioso e profano. Desde muito cedo, o contato com as línguas e as respectivas literatura  despertaram nele a admiração e uma verdadeira paixão pela cultura clássica. Este por assim dizer “caso de amor” iria transformar Homero em companheiro inseparável do Pe. Rambo. Ele recitava seus versos,  no original grego, para os escoteiros junto à fogueira nos acampamentos em Cambará. Em 1917, com apenas 12 anos de idade, experimentou seu primeiro encontro com  a ciência. Ele próprio registrou assim o episódio:
“Em 1917 encontrei-me a segunda vez com o Padre Rick. Na época eu era aluno no seminário para meninos em Pareci Novo. Sobrecarga de trabalho nas Missões Populares e constrangimentos  policiais ocorridos na colônia alemã, durante meses o tornaram inapto para o trabalho. Certo dia pegou um feixe de flores do mato e nos explicou, a nós filhos de colonos, como eram os nomes das diversas partes da planta, para que fim serviam e como soavam os nomes latinos. Foi a primeira aula de botânica da minha vida e, se hoje eu próprio sou botânico, teve a sua origem na decisão então tomada: se um homem como o Pe. Rick se dedica a essas coisas, a ciência deve ser algo de grande.”
E de fato, a decisão então tomada se transformaria na maior razão de ser da vida. Não a ciência como ciência, não a ciência com objetivos utilitaristas, não a ciência como caminho para a fama e a imortalidade, mas a ciência com meio para compreender a origem, a evolução e o destino do Universo e do homem e, principalmente qual é o lugar de Deus nesta história fantástica. E, na medida em que suas outras paixões: a literatura, a batalha pelo bem-estar e o progresso dos colonos, o empenho na preservação da germanidade, foram sendo atropeladas e frustradas pelo andar do tempo, pelas circunstâncias históricas e, porque não dizê-lo, pela inveja e a incompreensão dos homens, a pesquisa científica avançou num crescendo contínuo. A morte prematura colheu-o no auge da produção científica e do reconhecimento nacional e internacional.
Uma visão panorâmica sobre a vida e atividade do Pe. RAmbo não deixa dúvida de que ele foi dotado, antes de mais nada, de um espírito universalista como é raro observar-se  na sua época. Se tivesse nascido na Renascença, figuraria com muita probabilidade na galeria daqueles sábios que dominavam todos os campos do conhecimento. Tudo interessava, desde as línguas e literaturas clássicas da antiguidade, da Idade Média, dos tempos modernos e contemporâneos, passando pela História Natural na totalidade dos seus campos, pela Filosofia, Teologia, História e o futuro do seu povo colonial. E, na medida em que incursionava e se aprofundava nas diversas especialidades e tentava entendê-las na sua essência, foi tomando forma a pergunta que em última análise importava responder: Afinal em que consiste a razão última de ser do universo  em que o homem construiu, constrói e continua construindo a sua história? Em outras palavras. Qual é a missão do cientista ao fazer ciência, o filósofo ao perguntar  pela natureza e finalidade das coisas, o sociólogo ao se preocupar com o bem estar das sociedades, o historiador ao procurar o fio condutor que serviu de referência para a humanidade traçar e trilhar o seu caminho. O Pe. Rambo deixou a resposta registrada no seu diário com data de 24 de junho de 1954:
“Ora é a Ciência o aperfeiçoamento supremo do espírito humano na terra. Cada ciência é, em última análise, uma re-criação dos pensamentos de Deus e de seus planos construtores. Neste mundo, contudo, esses pensamentos nunca podem levar a o término. O melhor que se pode fazer é um trabalho de atalho. Se após uma vida repleta de pesquisa honesta finalmente se pensa  ter chegado tão longe pela ciência, essa mesma vida chegou ao fim.”
A entrada no seminário em 1917 representou para o menino Balduino, a abertura das portas para transitar livremente por todos os campos do conhecimento. Aproveitou o tempo para munir-se dos instrumentos indispensáveis para percorrer a estrada do saber. Aprendeu as línguas mais importantes: o português, alemão,, latim, grego, francês, inglês, italiano, espanhol e, até rudimentos de russo, com as respectivas literaturas. Iniciou-se nos conhecimentos básicos das Ciências Naturais e adentrou-se nos meandros da geografia e da história e, mais tarde, da Filosofia e Teologia. Apropriou-se, portanto, das ferramentas que lhe permitiriam aproximar-se da alma que vivifica o universo e justifica a sua existência. E, pouco a pouco amadureceu nele uma compreensão do mundo, não digo de todo original, mas, com certeza peculiar. Conforme ele, o mundo em que vivemos, compreendido na sua totalidade mineral, vegetal, animal e humana, forma uma unidade que tem no Criador a sua origem, a sua razão de ser e o seu destino final. Observa-se nesta visão uma proximidade, com certeza não casual, com aquela que Teilhard de Chardin formulou sobre o mundo e o universo. Na percepção deste, tudo que nos rodeia tem a sua causa e origem no “Alfa”, que vem a ser o Deus Criador e tudo converge ao destino último, o “Omega” que vem a ser o mesmo Deus Criador. Este esquema linear de causa, efeito e finalidade relativamente simples, na formulação da síntese em Teilhard de Chardin, em Rambo complica-se bastante. Na tentativa da formulação de uma síntese, em vez da metáfora “Alfa – Omega”, toma corpo uma outra, a da “totalidade”. Não se encontram referências explícitas nos seus escritos mostrando que ele acompanhou o esforço dos teóricos seus contemporâneos que formularam a concepção organísmica-sistêmica da natureza, tendo à frente Ludwig von Bertalanffy. Em todo o caso alinhou-se na sua concepção teórico-filosófica da natureza, com o movimento científico e filosófico que, desde o século dezenove, procurava superar a  visão casual, mecanicista, materialista. A idéia de que o universo se resumia na soma das suas partes e processos, que a compreensão da essência da natureza e da vida se explica pelas funções orgânicas e suas correlações mútuas, que a inteligência, os impulsos e as aspirações do homem não passam de uma mera sofisticação das estruturas e funções, já não responde a uma questão crucial. A pergunta pela natureza das partes no todo e o próprio sentido do todo, começou a incomodar cientistas e filósofos em número crescente.
Os métodos empíricos mostraram, pouco a pouco, as suas limitações e o aprofundamento em busca de uma solução global, foi deixando um crescente sentimento de impotência e de frustração entre os cientistas. O mundo científico optou então por dois caminhos. A grande maioria, ignorando ou rejeitando qualquer busca de solução fora e além da investigação empírica, continuou animado pela esperança ou convicção mesmo, que esses métodos continham a chave para a explicação última da natureza. Mas a questão se complicava de modo especial quando se perguntava pelo lugar que o homem ocupa no universo. O esquema simples, retilíneo, didático da gênese a partir do “Alfa”, a evolução do mundo até a culminância do homem e a consumação no “Omega” de Teilhard, assume em Rambo a figura da “Totalidade”. Nela há lugar para tudo e tudo tem um sentido e a tudo cabe uma função no todo. O universo resume-se numa gigantesca unidade na qual o mais insignificante dos elementos, tem sentido e lhe cabe uma tarefa. Essa compreensão perpassa, como um fio condutor,  a sua produção literária e científica .
A compreensão do universo como um todo, como um organismo no plano filosófico, não podia deixar de refletir-se no plano ético, moral e teológico.
As implicações ético-morais nas relações do homem com a natureza, já ficaram explícitas, em 1942, na sua obra, que se tornou um clássico de referência para o estudo do Rio Grande do Sul:  “A Fisionomia do Rio Grande do Sul”. No final da obra ao apontar para as razões que fundamentam ações concretas de proteção à natureza, destacou três:
“A proteção da natureza está em primeiro lugar a serviço das ciências naturais, antropogeográficas e históricas; em segundo lugar, baseia-se sobre um princípio de ética natural, que considera imoral a destruição desnecessária e inconsiderada dos tesouros da beleza nativa; em terceiro lugar, protegendo o que há de precioso, restaurando o que já sucumbiu, acomodando as obras da mão humana ao estilo da terra, torna-se um aliado de valor da higiene e da pedagogia sociais e um adjutório indispensável da educação nacional.”
Muito antes, portanto, que a preservação do meio ambiente e a preocupação ecológica assumisse as proporções  de bandeira política ou de um messianismo ideológico, por vezes beirando o fanatismo, o Pe. Rambo se posicionou diante da questão com o argumento que, em última análise, justifica qualquer iniciativa neste particular. A relação com meio ambiente tem a ver com a ética e a moral. Essa constatação flui como conseqüência lógica  da compreensão do universo com um todo harmônico. As intervenções indevidas em suas partes comprometem o todo e, com isso, terminam ferindo o homem em seus direitos fundamentais à vida e ao bem-estar. Comprometem, outrossim, povos inteiros e, quem sabe, a humanidade como um todo.
Como já assinalamos mais acima a obra inteira do Pe. Rambo como ele mesmo deixa claro, tem como propósito central formular uma grande síntese. É evidente que não é possível falar individualmente de todas elas no espaço limitado de uma palestra. Escolhemos por isso a sua obra de referência: “A Fisionomia do Rio Grande do Sul” e alguns excertos do seu diário de viagem aos Estados Unidos, em 1956 a convite e expensas do governo daquele país.
A obra que, sem dúvida, permanece até hoje como referência obrigatória para quem estuda o Rio Grande do Sul sob os mais diversos aspectos, é A Fisionomia do Rio Grande do Sul. A primeira edição data de 1942, uma edição limitada de 500 exemplares distribuídos entre pessoas interessadas pelas coisas do Estado. No prefácio para a segunda edição ele próprio detalhou os motivos que o levaram a escrever a obra.
“O presente livro baseia-se sobre a literatura citada no fim, e sobre as  observações próprias recolhidas nos últimos anos.”
“Sua finalidade é descrever o Rio Grande do Sul tal qual é, atendendo a três aspectos: o aspecto científico, pois a monografia natural necessita do fundamento das ciências naturais; o aspecto didático, pois a monografia quer orientar praticamente sobre as coisas riograndenses; o aspecto estético, pois a monografia deve corresponder à beleza natural da paisagem”.
“Resulta assim o caráter peculiar do livro: devido à finalidade científica, é necessário enumerar e descrever todos os fatos essenciais da natureza riograndense; devido à finalidade didática, é necessário colocar estes fatos em ordem lógica e natural; devido à finalidade estética é necessário revestir o conjunto duma forma literária e sóbria”.
“Verdade é que deste modo o livro não pertence exclusivamente a nenhum dos três gêneros citados, pois cada finalidade parcial deve subordinar-se, na medida imposta pelo total, às duas outras; aceitamos este compromisso, para chegarmos o mais perto possível da realidade  riograndense tal qual ela é.
O Pe. Arthur Rabuske, depositário do espólio literário do Pe. Rambo e o mais profundo conhecedor da sua obra e personalidade, escreveu na apresentação à terceira edição de “A Fisionomia do Rio Grande do Sul”:
“A Fisionomia”, apesar dos evidentes progressos científicos surgidos entre nós durante o último meio século, ainda se constitui para diversos efeitos numa das obras básicas sobre a cultura Sul-Riograndense. Assim já se evidenciou em fins de 1955, quando uma enquete feita pelo jornalista Carlos Reverbel nas colunas do Correio do Povo, revelou que ela  ocupava o quinto lugar entre as dez obras mais representativas no concernente ao Rio Grande do Sul. Nos dias em curso, dificilmente  algum cientista teria a coragem de versar sozinho um assunto  tão amplo e complexo, como se faz em “Fisionomia”. É que tais visões de conjunto e globais ou holistas, são o privilégio de poucos e como que deixaram de existir no atual mister científico. Consiste o valor perene de “A Fisionomia” não em último o lugar no fato de seu autor pioneiro, como talvez nenhum outro entre nós, da Ecologia, para  a qual hoje temos tanta sensibilidade e, sobretudo, na interpretação, rara no mundo científico especializado, da beleza das diversas paisagens naturais do Rio Grande do Sul, em cujo centro se encontra o ser humano”.
No prefácio para a terceira edição eu próprio escrevi:
“Para compreender “A Fisionomia do Rio grande do Sul” em todo os eu alcance, é preciso conhecer um pouco mais de perto o seu autor. O Pe. Rambo foi uma dessas personalidades versáteis, universais e irrequietas, beirando à genialidade e, ao mesmo tempo sensíveis, capaz de extasiar-se com a visão de um panorama grandioso, ou comover-se com uma flor singela escondida no meio das ervas do campo. Para quem o conheceu mais de perto e teve oportunidade de privar com ele nas suas andanças pela natureza, fica difícil decidir em que foi maior: se foi como religioso, como cientista, como arguto observador dos acontecimentos  que movimentaram a história das décadas vinte, trinta quarenta e cinqüenta, do século vinte”.
“A Fisionomia do Rio grande do Sul fixou a imagem do Estado, tal qual ela se apresentava no final da década e 1930. Ao percorrer as páginas desta obra rara acompanha-se, quase como que assistindo a um documentário filmado, a natureza e formação geológica das diversas regiões naturais, sua topografia, sua fauna, sua flora e a presença do mão do homem humanizado grande extensões, agredindo perigosamente a paisagem natural”.
Não raras são também as referências antropológicas e históricas às quais o Rio Grande do Sul serviu de cenário. Ora são os guaicurus percorrendo o Pampa, ora são os guaranis das Missões,  ora os missionários, ora os estancieiros herdeiros do gado missioneiro, ora são os imigrantes vindos da Europa do Norte e Central que ocuparam em definitivo o Estado coberto de florestas pluviais e campos naturais.
A leitura de “A Fisionomia” converte-se num verdadeiro prazer por retratar com toda  fidelidade o que foi o Rio Grande do Sul há setenta anos e fascina  por ter sido  escrita num estilo vigoroso, atraente e adequado aos diversos enfoques. As descrições são formais e objetivas quando a precisão científica o recomenda; são poéticas e carregadas de sentimentos quando o objeto o pede. Falando da destruição das reduções jesuíticas assim se exprimiu: A melancolia da História paira sobre esta paisagem. Tudo que é belo   é destinado  fenecer. A inveja entre duas nações irmãs, linhas geográficas  traçadas e esmo nos gabinetes de Madrid e Lisboa, instintos interesseiros, ódio à religião – um dragão de sete cabeças se arremessou sobre as reduções, baniu os missionários, fez debandar os índios, votou à ruína os templos. Os restos de São Miguel, de São Lourenço, de São João Velho, invadidos pela vegetação, por longo tempo aproveitados como pedreiras, falam uma linguagem muda, mas eloqüente, de acusação contra o mistério da humana iniqüidade; -  São vigorosas quando a paisagem o reclama, como na descrição da subida da serra para Farroupilha e Carlos Barbosa: No fundo, em ambos os lados, surgem duas montanhas de selvagem beleza, o morro Canastra e o Morro do Diabo. Como quilhas de imensos navios de guerra, suas arestas esculpidas pelas águas apontam pra o vale;    São épicas quando faz referência aos missionários e índios das reduções. A beleza das ruínas antigas, inexistentes no resto do Estado, comunica a essa região um encanto imortal. Ali a fé cristã e a civilização européia pela primeira vez firmaram pé nas plagas abençoadas do Tape misterioso. Ali, nesses  campos marchetados de capões, viajaram, a pé e a cavalo, os Roque Gonzalez, os Montoyas, os Romeros. Ali os selvagens, saindo do covil de suas matas, curvaram reverentes perante a cruz aquela soberba cerviz, que a espada dos conquistadores não conseguiram dobrar. Ali floresceram plantações, pastaram rebanhos sem conta, ferveu uma cultura de imenso dinamismo; .... -.... Vêm, enfim, carregadas de advertências quando deplora a devastação das florestas, o extermínio da fauna e a desfiguração das paisagens naturais. Um povo que se descuidasse desse elemento, seria falto de um requisito essencial da verdadeira cultura humana total, e indigno da terra com que a pródiga mão do criador o presenteou.
Cabe ao Pe. Rambo o mérito de ter sido talvez o primeiro entre nós, a chamar a atenção que a destruição indiscriminada da natureza implica numa questão ética e moral. A um certa altura escreveu: A proteção à natureza, em segundo lugar, baseia-se sobre o princípio da ética natural que considera imoral a destruição desnecessária e inconsiderada  dos tesouros da beleza nativa.
Considerando que a Fisionomia do Rio Grande do Sul é uma obra escrita no final da década de 1930, as propostas de Proteção à Natureza apresentadas  são igualmente pioneiras entre nós. Ao introduzir o assunto fez as seguintes reflexões:
“O homem filho desta terra, que lhe fornece o pão de cada dia e os símbolos de sua vida espiritual, sente um respeito inato perante a fisionomia desta sua mãe e pátria. Enquanto o espaço é suficiente e a densidade demográfica pequena, não se tornam muito conscientes tais sentimentos, mas, no momento em que as necessidades brutais da vida forçam a interferir sempre mais na expressão natural do ambiente, desperta  a dor perante a destruição de suas feições naturais e o desejo  de as conservar, senão no conjunto, ao menos em alguns lugares e nos traços mais característicos.”
Assim, no curso de todas as culturas humanas, mais cedo ou mais tarde, surgem as tendências de proteção ativa da natureza; um povo que se descuidasse deste elemento seria falto de um requisito essencial da verdadeira cultura humana total e indigno da terra, com que a pródiga mão do Criador o presenteou”.
E termina a Fisionomia com quatro propostas concretas.
A primeira. Proteção aos monumentos naturais, isto é, de criações individuais da natureza, de importância científica, histórica ou fisionômica, como sejam árvores destacadas por seu volume, forma; formações geológicas locais interessantes ou instrutivas, rochedos e montanhas de caráter peculiar.    –seguem exemplos na p. 433.
A segunda. Proteção a espécies botânicas e zoológicas em perigo.
- Conservação das matas virgens. Até hoje o desmatamento  esteve entregue ao acaso, sujeito ao bel prazer dos donos dos lotes. É um erro funesto entregar todas as matas a proprietários individuais e abandoná-las  em seguida ao machado. No interesse geral, o Estado deve reclamar para si porções da reserva florestal e, além disso, vigiar sabiamente as derrubadas necessárias par a lavoura.
-  Florestamento e reflorestamento ........ 
- Proteção aos animais. .....
A terceira.  Harmonização das obras humanas com a paisagem natural
-  As moradias....... integradas na natureza
- Traçado das estradas .... integrados n natureza
- Utilização das quedas de água .... sem desfigurar demais a paisagem natural.
A quarta. Criar parque  e reservas naturais como nos grandes países civilizados
- O exemplo dos Estados Unidos com seus 50 parques – a Rússia  -  o Canadá  -  Argentina.  E o Brasil: na época só com dois parques.
            Critérios para a criação de parques:   o perigo da destruição incessante pela lavoura   e a riqueza das formas naturais.
No Rio Grande do Sul:  As matas virgens do Alto Uruguai e os Aparados da Serra.
Na concepção de Rambo, como deverias ser um parque? 
Quando em 1956 visitou os parque americanos a convite daquele país, resumiu o seu conceito de parque natural, com as palavras:
“Desde que voltei da América, empenhei-me que também no Brasil se constituíssem mais parques nacionais. Até agora dispomos de dois, um nas terras montanhosas do Itatiaia e o outro nas cataratas do Iguassu. Se tudo correr bem teremos, em breve, um terceiro nas escarpas  orientais dos Aparados da Serra, com o Taimbezinho como núcleo inicial.  O lamentável é que entre nós, constrói-se em primeiro lugar um enorme hotel para atrair os turistas endinheirados de dentro e fora do país. Com isto está viciado o  conceito de um autêntico parque. O parque deve estar a serviço  da proteção da natureza de do recreio do povo. O rico que aparecer, deve ser obrigado a viver com a mesma simplicidade que o operário e o colono. As pessoas que não conseguem dispensar o hotel caro, o rádio, a televisão, a dança e o jogo, que fiquem onde tudo isto está disponível de qualquer forma. Em nenhum parque jamais escutei um rádio berrando, nem observei algum aparelho de televisão, nem percebi música de dança, nem presenciei chás dançantes. De maneira alguma quero afirmar que o americano médio é melhor do que nós. Uma coisa, porém, é certa. Eles têm mais compreensão , mais decência e mais respeito perante a beleza e a tranqüilidade da natureza criada por Deus”.
Na apresentação para essa tentativa de desenhar os traços mais marcantes do Pe. Rambo, sinalizei para a concepção do mundo e do universo que subjaz à sua produção literária e científica. A condensação, a síntese do seu pensamento encontra-se   formulada num série de 46  cartas, redigidas entre os anos de 1944 e 1947. P Pe. Rabuske que reuniu essas cartas e as preparou para uma publicação expressou assim a sua opinião  sobre elas:
“Duvida-se  sem qualquer favor, da existência de outros, que lhe sejam iguais ou semelhantes em nossas fileiras sob o ponto vista cultural e até mesmo literário.  Neles está, por assim dizer o Pe. Balduino Rambo todo inteiro, com suas limitações, defeitos e paixões, mas também com seus enormes dotes, próximos ao gênio. Sua pessoa, vida e obra, faz lembrar de algum modo a um Salomão do Cântico dos Cânticos, a um Agostinho nas suas confissões, a um Pascal nos seus Pansèes, a um Nietzsche no vigor da linguagem de um Assim falou Zaratustra, a um Peter Lippert, na originalidade de suas cartas Desde o Egadin, ou a um Teilhard de Chardin no seu Fenômeno Humano.
Acrescentaria ainda um Nicolau de Cusa com sua síntese do mudo resumida nas palavras “Da multiplicidade das partes emerge o Todo”; de Ludwig von Bertalanffy com sua teoria “Organísmica e Sitêmica”; e finalmente “A Linguagem de Deus” de Francis Collins, diretor do Programa Genoma.
É nessas cartas que se concentra de alguma forma o pensamento do Pe. Rambo atendendo a praticamente todas as questões existenciais do homem. Ele próprio deixou algumas sugestões para o título da síntese como, “Do Múltiplo ao Uno - Cartas sobre a síntese das Ciências Naturais.”
Escolhemos ficar com esta sugestão de título para concluir a exposição sobre vida e obra de. Rambo.
“Do Múltiplo ao Uno” -  Própria colocação dos dois conceitos expressa a preocupação do autor. A questão não se resume em compreender  a multiplicidade das realidades que formam o universo  e as usas correlações mútuas. Não se trata também de identificar as leis que regem essas correlações. O que importa é saber o que cada um delas, no seu nível de perfeição e complexidade, representa na compreensão do todo do universo. E o universo com o que o Pe. Rambo trabalhou compreende tanto as realidades inanimadas, como o mundo vegetal e animal, como homem e o próprio Deus. Neste universo não há lugar para a tradicional dicotonomia de conceitos, não raro antagônicos como material e imaterial, espírito e matéria, corpo e alma, divino e humano, sagrado e profano, espiritual e corporal, vida e morte,  tempo e eternidade.  Na medida em incursionava  nas mais diversas vertentes do conhecimento e, na medida em que refletia sobre o mundo, o homem e o Deus da tradição cristã, foi-se esboçando uma concepção sintética, uma compreensão  na qual foram ocupar o seu devido lugar, as realidades mais insignificantes, mais prosaicas, como é uma nuvem, uma flor, uma lagartixa, um seixo de arroio, como também as mais sublimes como é o homem e o próprio Deus. Tudo vai adquirindo sentido e assumindo identidade na medida em que se insere na totalidade e dela faz parte integrante. A multiplicidade, na sua aparente dispersão, vai dando lugar a um todo harmônico que encontra na metáfora da sinfonia a sua melhor expressão. Da pluralidade e da combinação das notas musicais, sons e ritmos, executados por meio de instrumentos tecnicamente perfeitos e por mãos, dedos e  bocas de virtuoses, sob a batuta de um maestro talentoso, resulta a sinfonia em toda a sua grandiosidade. A metáfora da sinfonia  oferece uma imagem muito próxima do “múltiplo ao uno”, como o Pe. Rambo formulou em síntese o seu pensamento. O universo não é constituído por notas isoladas,  acordes fora do todo e fora do contexto, instrumentistas perfeitos, mas  isolados, maestros geniais sem alma. Tudo isso até pode impressionar, mas jamais produzirá o gozo estético e  empolgação plena da sinfonia.
Em lugar de formular  uma concepção abstrata do universo para, por meio de deduções matemáticas entender  as realidades e determinar-lhes o lugar que lhe cabe, procurou nelas próprias  os elos  que as relacionam entre si e, por este caminho, chegar ao todo e no todo encontrar a razão de ser  de cada uma das partes em particular. Portanto, ao se dedicar à ciência, não o fez pelo conhecimento científico em si, mas para descobrir o que ele tem a oferecer para entender o todo.
E assim foi a vida do Pe. Rambo, seja como literato, seja como mestre no Colégio Anchieta, seja como catedrático na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, seja como líder colonial, seja como cientista, seja como sacerdote jesuíta. Impulsionava-o uma incansável busca pelo sentido do universo e tudo que nele existe e se movimenta: as leis que o regem, o mundo mineral que o compõe, os seres vivos que lhe dão vida e colorido, o homem que nele constrói a sua História, a pergunta pelo começo, a incógnita pelo destino final e, em meio a esta unidade cósmica a pergunta crucial: E nisto tudo, qual é o lugar de Deus e qual é o destino do homem? Em toda a sua obra científica e literária, a busca da síntese faz com que o universo e suas partes, o homem e Deus, façam sentido, perpassa como um fio condutor as linhas e as entrelinhas da sua obra. Foi esta inquietude e esta mesma curiosidade que levou o Pe. Rambo a enfrentar as perplexidades e aparentes contradições da vida pessoal e comentar, sem reticências, os conflitos mais íntimos, os acertos e desacertos no seu relacionamento com as pessoas e instituições. Em toda essa multiplicidade de surpresas agradáveis, decepções, descobertas, observações, o que importava era vislumbrar o Todo na Multiplicidade, a sinfonia produzida pela orquestra de muitos instrumentos, muitos instrumentistas, muitas sons e muitos  acordes.
E, nada mais significativo do que a reflexão que registrou em seu diário, feita diante  do monumento a Don Quixote de la Mancha, nos jardins do Museu de Cultura Hispânica em Nova York: “Somos como loucos, dotados de momentos de lucidez, tropeçando e caindo em busca de Deus”.


Fac-Simile da Capa. Pag. 121
"A pluralidade na unidade".

Matéria publicada no site Contribuições

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