Assim como Bernardo Padeiro, um outro caiense de origem humilde teve bastante destaque no município ao longo das décadas de 1960 e 1970. Ele se chamava João da Silva Reis, mas todos o conheciam pelo apelido de Cantarola. Começou a se destacar como músico. Ele era baterista de bandas da época, como o Jazz Espia Só e o Céu Azul. E chamava atenção, também, pelo fato de fazer caretas. Ele virava a sua dentadura postiça dentro da boca e arregalava os olhos produzindo uma total transformação na sua fisionomia. Enquanto tocava sua bateria, ele atirava as baquetas para o alto e as aparava novamente, continuando a música, sem perder o ritmo.
Ele também era agricultor e prestava serviços aos demais produtores rurais fazendo a castração de animais. Especialmente suínos. Principalmente em fêmeas, o que exigia mais conhecimento e habilidade. Era muito desinibido e “despachado” e se caracterizava por uma extraordinária disposição para fazer favores a todas as pessoas. Trabalhava mais para os outros do que para si mesmo. E, como muitos lhe deviam favor, acabou por capitalizar a gratidão das pessoas para obter votos. Ele gostava da política e, mesmo sendo semi-analfabeto, se elegeu vereador. Foi também vice-prefeito (na chapa de Bruno Cassel), secretário de obras e candidato a prefeito.
O partido de Cantarola era o Democrata Cristão (PDC). Um partido conservador que se opunha ao Partido Trabalhista Brasileiro (de centro-esquerda). Quando ocorreu a Revolução (ou golpe) de 1964, a maioria dos gaúchos empolgou-se com a resistência organizada pelo governador Leonel de Moura Brizola, que era do PTB e tentou resistir ao golpe militar que derrubou o presidente João Goulart (também do PTB e cunhado de Brizola). Mas Goulart não resistiu e partiu para o exílio, no Uruguai, o que fez com que os militares assumissem o poder sem maior resistência. Mas, antes disso, a situação esteve muito difícil e quase chegou a ocorrer um confronto militar. Brizola não aceitou a deposição do presidente. Ficou no Palácio Piratini, armado e cercado de correligionários dispostos à resistência, no movimento que ganhou o nome de Legalidade. Houve até a ameaça de bombardeio aéreo ao palácio de governo (situado no centro de Porto Alegre). Por fim, Brizola acabou cedendo e partiu também para o exílio. Evitou-se assim o derramamento de sangue. O cardeal Dom Vicente Scherer, natural de Bom Principio, apoiou Brizola e diziam os oponentes do governador que este fugiu disfarçado com uma batina de padre.
Cantarola fez, então, a sua maior proeza. Ele se dispôs a ir a pé até Brasília, justificando que havia feito a promessa de que faria isso caso fosse evitado o confronto armado no impasse causado pela derrubada de Goulart.
Bernardo, que o conhecia muito bem, foi contra a idéia. Antes da partida de Cantarola um repórter o entrevistava sobre o assunto e Bernardo não se conteve. Tentando ainda demovê-lo da idéia, disse: “Tu vai fazer uma loucura. Isto não é coisa de gente séria.” O repórter perguntou porque estava dizendo aquilo e Bernardo respondeu: “Ele vai deixar a mulher com meia dúzia de filhos menores e vai sair por este mundo a fora”. Mas Cantarola disse que ele havia feito a promessa e tinha de cumprir.
E assim, solenemente, com acompanhamento da imprensa da capital, ele partiu para a sua longa jornada. Mas, por estar usando calçado inadequado, foi parar no hospital, em Caxias, com os pés cheios de bolhas. Mas não desistiu. Depois de recuperado seguiu viagem e chegou à capital federal.
Naquela época a assistência social era muito deficiente e havia muito mais miséria do que atualmente. Não eram incomuns os casos de idosos que moravam sozinhos, em locais isolados, sem nenhuma assistência. Quando uma dessas pessoas morria, o fato só era percebido dias depois, quando o cadáver já estava apodrecido, sendo comido pelos vermes. O mau cheiro era insuportável e, nesses casos, quando a polícia era avisada do fato, apelava sempre para Cantarola. Ele comparecia com muito boa vontade e se dispunha a fazer o trabalho, piedoso mas repugnante, de remover o cadáver colocando-o num saco ou caixão.
Foto do acervo de Fernando dos Santos
Foto do acervo de Fernando dos Santos
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