terça-feira, 24 de julho de 2012

1448 - Pedro Ignácio Schmitz e a cultua guarani


O padre Pedro Ignácio Schmitz, natural de Bom Princípio, é um dos maiores antropólogos e arequeólogos brasileiros
Entrevista concedida pelo antropólogo principiense Pedro Ignácio Schmitz a Patrícia Fachin

“Por ser um povo numeroso, agricultor, social e politicamente organizado, mas sem uma estrutura estatal e poder unificado de resistência, os guarani ficaram sujeitos à incorporação nos estados coloniais como escravos, como prestadores de serviço dependente (na encomienda), ou organizados em missões”, assinala Pedro Ignácio Schmitz, à IHU On-Line. Com uma trajetória marcada por lutas e resistências, os guarani também cultivam um estilo de vida próprio e, segundo Schmitz, na entrevista que segue, concedida, por e-mail, são considerados, pelos antropólogos, “uma das populações mais religiosas do mundo”. Para ele, essa característica “certamente se aplica aos guarani que hoje vivem no estado e migram em busca da ‘terra sem males’. Quando, em sua peregrinação, eles ocupam uma mata virgem, a primeira construção é um templo, de madeira, ao redor do qual levantam suas casas. Neste templo, se reúnem todas as noites para recitar seus antigos poemas e dançar seus ritmos. Estas rezas noturnas têm hora para começar, mas não têm hora para terminar, podendo entrar manhã adentro. Os velhos poemas, guardados na memória dos rezadores, falam das divindades, da criação do mundo e da natureza do homem”, salienta.
Pedro Ignácio Schmitz é professor, pesquisador e diretor do Instituto Anchietano de Pesquisas da Unisinos e sócio-fundador da Sociedade de Arqueologia Brasileira (SAB). É graduado em Geografia, História, Filosofia e Teologia e doutor em História. Trabalha, entre outros assuntos, com populações indígenas e missões religiosas na América Latina. Publicou e organizou diversos livros, entre eles, citamos: Casas subterrâneas nas terras altas do sul do Brasil(São Leopoldo: Gráfica Unisinos, 2002); Içara: um jazigo mortuário no litoral de Santa Catarina (São Leopoldo: Unisinos, 1999) e Aterros indígenas no Pantanal do Mato Grosso do Sul (São Leopoldo: Editora Unisinos, 1999).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - A partir de que momento aparecem os primeiros índios guarani no Rio Grande do Sul? Que fatores favoreceram a migração deles para a região?
Pedro Ignácio Schmitz - A partir do século V ou VI de nossa era, se conhecem aldeias de índios guarani nas matas do centro e noroeste do Estado. Elas são postos avançados de uma colonização, que será sistemática, das matas dos rios Paraná, Uruguai e Jacuí, por uma população da borda meridional da floresta amazônica, que se expande em busca de ambiente semelhante ao que deixa. As razões da migração: o crescimento demográfico regional e a deterioração do ambiente por fatores climáticos e humanos.


IHU On-Line - O que a arqueologia revela sobre a história do povo guarani?
Pedro Ignácio Schmitz - A arqueologia pode construir uma história desta população, mostrando suas características culturais, a organização das aldeias com seus espaços e caminhos, o manejo da floresta através do cultivo, da caça e da pesca, a contínua expansão em busca de matas virgens, o exclusivismo do grupo frente a populações não-guarani, a organização das tribos em nível local e regional, sem alcançar uma estrutura superior para a qual teriam gente suficiente e uma cultura homogeneizada.
O relato a seguir não mais se baseia na arqueologia, mas na história e na antropologia. Por ser um povo numeroso, agricultor, social e politicamente organizado, mas sem uma estrutura estatal e poder unificado de resistência, os guarani ficaram sujeitos à incorporação nos estados coloniais como escravos, como prestadores de serviço dependente (na encomienda), ou organizados em missões. Todos os guarani foram envolvidos num ou noutro destes processos coloniais de busca de mão-de-obra e, nesses processos, se perdeu sua gente e sua cultura. Nas últimas décadas, os poucos sobreviventes se reorganizaram como etnias, cresceram numericamente, mas hoje alcançam bem menos que 10% do que eram ao tempo da colonização europeia. Confinados em postos indígenas, pleiteiam melhoria das condições, que a constituição nacional lhes garante; os do Rio Grande do Sul, que se vêm infiltrando da Argentina e do Paraguai, migram em busca da mítica “terra sem males”, que talvez lhes dê tranquilidade, mas dificilmente uma saída para o futuro.
IHU On-Line - O que caracteriza os guarani diante de outras etnias indígenas?
Pedro Ignácio Schmitz - A cultura guarani é diferente da cultura das outras populações indígenas, que povoaram o Sul do Brasil, nos mitos fundadores, na organização da sociedade, na economia, nas estruturas construídas, nas relações entre as aldeias e com as populações vizinhas.
IHU On-Line - Como o senhor descreve a arquitetura das casas do povo guarani? E nesse sentido, como se dava a organização social deles nas aldeias?
Pedro Ignácio Schmitz - Os missionários praticamente nada nos dizem sobre a habitação guarani, e, quando um missionário a descreve, fala de um galpão em que estão reunidos índios a serviço pessoal para os espanhóis, já fora de seu habitat natural. Na falta de melhor informação, muitas vezes, usa-se o modelo da casa grande dos índios Tupinambá da costa brasileira, em que chegariam a conviver até duzentas pessoas, sob a coordenação de um líder consensual; as quatro casas da aldeia estariam dispostas ao redor de uma praça retangular com paliçada defensiva. A arqueologia local, ao contrário, mostra casas pequenas, isoladas ou agrupadas sem ordem definida, formando aldeias em que, segundo os missionários, e os dados arqueológicos, haveria de 100 a 200 pessoas, sob a liderança de um cacique de aldeia. As casas estavam construídas com material perecível (troncos, varas e palha), do qual nada sobrou, e tinham um ou dois lugares de fogo (fogões), indicando que, na casa, haveria o correspondente número de mulheres, isto é, uma ou duas. Este número de fogões por casa indica que a poligamia, que tanto escandalizou o missionário, deveria ser bastante restrita; poligamia generalizada seria impossível por falta de mulheres disponíveis.
As aldeias se localizavam, de preferência, na proximidade do rio, em lugar não atingido pelas enchentes, mas perto da desembocadura de um arroio e na proximidade de uma corredeira porque ali havia mais recursos e possibilidade de usar a água para o transporte e locomoção.
IHU On-Line - Em que era baseada a economia guarani?
Pedro Ignácio Schmitz - A economia básica do Guarani se baseava no cultivo de numerosas plantas alimentícias de origem tropical como o milho, a mandioca, o amendoim, feijões, a batata doce, o inhame, cultivadas consorciadas em roças abertas na mata, sem cultivar mais adubo que a cinza da queimada. Nelas, também era produzido o algodão para diversas finalidades, inclusive para alguma vestimenta. A caça, a pesca e a coleta de larvas eram as provedoras das proteínas animais. Como não havia animais domésticos, como vacas, porcos, galinhas, cavalos, não se podia contar com provimento regular de carne, não havia leite, nem abundância de gorduras, ovos, estrume para fertilizar as roças, animais para transporte e locomoção. Era uma economia de subsistência frágil e pouco estruturada que dependia da continuada movimentação das aldeias para novas matas em que o processo pudesse ser retomado. Assim, o povoamento cobriu a região toda, degradando a mata original. Este processo não poderia continuar indefinidamente, e não continuou porque foi interrompido pela conquista e colonização europeia.
IHU On-Line - Como acontece o processo de liderança entre os guarani? Eles seguem uma hierarquia? Que aspectos a definem?
Pedro Ignácio Schmitz - Da parte da arqueologia, nada conhecemos do processo de liderança guarani. Ao tempo das missões havia muitos caciques de aldeia, mas deles muito pouco sabemos. Os missionários nos falam dos caciques com liderança regional, que eram seguidos por dezenas de anônimos caciques de aldeia. Os caciques regionais do tempo da colonização tinham noção das forças atuantes no continente e usavam estratégias para defender seus seguidores. Por exemplo, no Guairá, PR, um grande cacique resistiu vinte anos ao convite do missionário porque temia que a entrada na missão o sujeitasse ao serviço pessoal aos colonos espanhóis; mas quando os bandeirantes chegaram muito perto da missão, ele foi somar forças com os missionários contra os paulistas. Um outro grande cacique, no Rio Grande do Sul, sentindo avançar para seu território, por um lado, a administração colonial espanhola, e, por outro, as bandeiras paulistas caçadoras de escravos, foi em busca do missionário. Ao tempo da colonização europeia, já havia certa tendência de continuidade nas lideranças regionais, mas elas ainda dependiam do desempenho e da aceitação do candidato. Ao lado dos caciques, por ocasião da instalação das missões, muitas vezes são mencionadas as lideranças religiosas, colocadas como opositoras e inimigas porque defendiam as tradições, que estruturavam a cultura indígena.
Nos guarani que migram pelo sul do Brasil, temos novamente caciques liderando aldeias isoladas e, ao lado deles, líderes religiosos. Até para se tornar cacique é preciso, antes, ser grande ‘rezador’.
IHU On-Line - Como se constituía a vida familiar entre os guarani? Quais os costumes familiares característicos desse povo?
Pedro Ignácio Schmitz - O homem guarani casava, de preferência, com a sobrinha, filha de sua irmã, que não era considerada parente, porque o parentesco só era transmitido pelo homem, como acontecia entre os antigos judeus. Mas como esta união provavelmente se realizaria tarde na sua vida, ele poderia casar primeiro com uma viúva. Se depois liberasse uma sobrinha, ele teria uma segunda mulher. A mulher era a encarregada da casa e da agricultura, que produzia alimento assegurado da casa; uma mulher na agricultura garantia um mínimo, duas era melhor, uma terceira ainda melhor. A mulher não só cuidava da casa, mas gerava filhas, que criavam genros, que se tornavam os aliados do sogro. O homem cuidava da caça, cujo resultado era menor e aleatório. A educação consistia em introduzir os filhos e as filhas nas tradições do grupo, que pouco mudava em séculos de existência.
IHU On-Line - Que crenças faziam parte do cotidiano guarani? De que maneira elas revelam a espiritualidade guarani?
Pedro Ignácio Schmitz - A arqueologia nada revela sobre suas crenças. Os missionários não estavam interessados nelas e procuravam extirpá-las. Como qualquer povo, os guaranis tinham mitos explicativos das estruturas e dos acontecimentos do mundo e da sociedade e também ritos com os quais procuravam pôr-se em contato com o sobrenatural; sabemos ainda que líderes religiosos, os pajés, procuravam defender suas crenças contra a atuação do missionário. Os antropólogos, que os estudaram, falam que a religião permeava todas as suas atividades, considerando-os uma das populações mais religiosas do mundo. Isto certamente se aplica aos guarani que hoje vivem no estado e migram em busca da ‘terra sem males’. Quando, em sua peregrinação, eles ocupam uma mata virgem, a primeira construção é um templo, de madeira, ao redor do qual levantam suas casas. Neste templo, reúnem-se todas as noites para recitar seus antigos poemas e dançar seus ritmos. Estas rezas noturnas têm hora para começar, mas não têm hora para terminar, podendo entrar manhã adentro. Os velhos poemas, guardados na memória dos rezadores, falam das divindades, da criação do mundo e da natureza do homem. “No começo era a Palavra, foi a Palavra que tudo criou, quando uma criança nasce, uma Palavra toma acento”. Isto lembra o começo do Evangelho de São João, mas nada tem a ver com ele.
IHU On-Line - A que família linguística pertence a língua guarani e quais são suas variedades? Como caracteriza o idioma guarani?
Pedro Ignácio Schmitz – Hoje, os guarani do Brasil, da Argentina e do Paraguai falam três dialetos da língua guarani, que pertence à família linguística Tupi-Guarani, do grande tronco Tupi, espalhado por grandes extensões da América do Sul, tanto no interior do continente como no litoral. Os Tupinambá do litoral brasileiro, depois dos Guarani da bacia do Rio da Prata, são os mais conhecidos. No Brasil, os grupos em maior destaque são o mbyá do sul e do litoral e o kayová do Mato Grosso do Sul. Mas existem numerosos outros grupos com sua identidade renovada e buscando estratagemas para sua sobrevivência e seu desenvolvimento.

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