A Sesmaria da Conceição era uma enorme área de terras, nas duas margens do arroio Cadeia. No final do século XIX ela pertenceu a dois homens que foram oficiais na Guerra do Paraguai |
Thomé Pires Cerveira, foi combatente na Guerra do Paraguai, chegando à patente de capitão, nos três longos anos que passou na guerra: de 1865 a 1868.
Thomé, ou Capitão Thomé como era conhecido na região, após o período da guerra voltou para localidade de São Sebastião do Caí, onde era um abastado dono de terras.
Como conhecia as artes militares, ele montou uma tropa provisória na região, uma espécie de guarda local, para proteger os vilarejos e fazendas naqueles tempos de revoluções e invasões, Época em que muitos dissedentes, baderneiros saím vagando, roubando os vilarejos, cometendo todo tipo de atrocidades.
A tropa de provisórios do capitão Thomé era composta por homens que haviam participado de alguns entreveros nas revoluções, mas também por cidadãos simples, donos de terras e moradores dos vilarejos locais, simpatizantes com a causa e dispostos a proteger seus bens e famílias.
Duclece Pires, também da família Pires Cerveira, por anos vinha sentindo o desejo de buscar a história de suas origens e antepassados. Ele correu atrás, catalogou e buscou informações verbais e documentais, tendo a genial ideia de compilar um livro e, assim, deixar documentado impresso e publicamente, boa parte da história da família Pires Cerveira. Pessoas importantes na história do século XIX. Personagem fundamental nesta história é o Capitão Thomé,
Segue abaixo alguns trechos da importante obra, nos quais Duclece Pires demostra o empenho, que o levou até Portugal e Espanha, para buscar informações sobre os ancestrais da família Pires Cerveira.
Narciso Pires Cerveira e José Pires, nasceram no final do século. Eles eram primos e, embora não se tenha as datas exatas dos seus nascimentos, sabe-se que ambos nasceram durante a década de 1780.
Eles foram abastados donos de terras e possuíam muitos escravos. Mais do que isso, foram desbravadores e fundadores, juntamente com outros pioneiros, da província de São Pedro. O atual estado do Rio Grande do Sul.
“Os primeiros membros da família dos Pires Cerveira, chegaram ao Rio Grande do Sul em 1770, vindos da região de Minho, extremo norte de Portugal. Junto com outras famílias da mesma região, vieram com o objetivo de colonizar e povoar a província de São Pedro do Rio Grande, no início de sua formação.”
“Entre eles estavam Narciso Pires Cerveira que, tendo se diriido primeiramente para a sesmaria da Santa Maria da Boca do Monte, veio depois se instalar, com sua descendência, junto aos Pires Cerveira nas margens do Arroio Cadeia, afluente do Rio Caí, na várzea dos campos da sesmaria de Conceição.
Fazia parte da propriedade, uma vasta extensão de terras de campo e mato, povoadas por um contingente de mais de cem escravos, que trabalhavam nas mais diversas frentes de atividades como pecuária, agricultura e fabricação da farinha de mandioca.
Sobre os escravos conta-se muitas histórias e lendas. Principalmente na época do Capitão Thomé Pires Cerveira e Ernesto Pires Cerveira.
Capitão Thomé Pires Cerveira: senhor de terras
e escravos e herói na Guerra do Paraguai
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ORIGENS
“Conta-se, também, que o matrimônio entre primos era costume de família, o que os mantinha fiéis a hábitos e costumes muito peculiares, marcado principalmente por uma personalidade de independência e a autodeterminação.
Estas características influenciaram bastante na condenação dos povos desta origem, pelo tribunal do Santo Ofício da casa real de Portugal, pena esta para todos aqueles que representavam perigo a segurança do reino lusitano, principalmente porque eram descendentes de cristãos velhos e cristãos novos.”
“As origens deste ramo familiar, data da formação do Reino de Portugal no fim do século Xl. Os Pires ou Peres eram descendentes diretos do povo semita (judeu). Em solo ibérico, passaram a ser chamados de cristãos novos porque, no começo da formação do império, adotaram o cristianismo como sua fé religiosa, devido às terríveis perseguições dos reis católicos e, assim, passaram a utilizar sobrenomes latinizados.”
“Os Peres, primeiramente, se fixaram na região do Minho, em Viana do Castelo, no norte de Portugal. Mais tarde chegaram até Lisboa. Foi na pessoas de do Ignácio Peres, um destacado fidalgo, muito respeitado na corte, que se deu o início o ramo familiar dos Pires. Ele teve como primogênito Vasco Francisco Pires, adotando este sobrenome e na forma portuguesa, gerando daí, uma nova e nobre família.
Vasco Francisco Pires foi capitão das chaves alcaide-mor do castelo de Lisboa. Teve o seu brasão de armas e título por merecimento em 1493, concedido pelo rei dom João 2º ( 1455 –1495), devido aos grandes serviços prestados à coroa.”
“Vasco Francisco em suas viagens a Viana do Castelo, conheceu uma bela jovem de nome Joana de Cerveira, vindo logo depois a tomá-la como esposa. Ela era a terceira filha de um destacado senhor de muitas terras na região de Minho, situada no norte de Portugal, próxima a Valença, na fronteira com a Espanha.”
“Existe ali um lugar chamado vila Nova de Cerveira, em a alusão a esta descendência, tendo suas origens no povo espanhol que, na época, habitavam a região da Galícia, onde se estabeleceu a fronteira entre os dois reinos. Portanto, os Cerveira, são de descendência espanhola, radicados em Portugal.”
“Desta união nasceu a primeira geração do Cerveira Pires, e por 400 anos, atingindo 12 gerações, Pires e Cerveira mantiveram-se unidos pelos laços de família. Um caso raro entre as organizações familiares. Tão raro que poucos são os remanescentes dessa linhagem, alguns membros dessa descendência ainda vivem em terras do Vale do Caí, na Encosta da Serra e do nordeste do Rio Grande do Sul.”
“O primeiro Pires a chegar em terras do Novo Mundo foi um jesuíta chamado Antonio Pires, um dos filhos de Dom Vasco Francisco Pires. Ele pertencia à companhia de Jesus e, junto com seus companheiros de fé Manuel de Nóbrega, Leonar Nunes e Bento de Barros, desembarcou na baía de todos santos no ano de 1515. Com a missão de domesticar e catequizar os brasis (indíenas brasileiros), e assim, prepará-los para atender aos propósitos dos colonizadores portugueses que começavam a chegar aos grupos e precisavam de mão-de-obra em abundância.”
“Um primo de Antonio Pires, de nome Luiz Pires, fez parte da esquadra de Pedro Alves Cabral, que partiu do Tejo, em 8 de março de 1500, formada por 13 navios com 1200 homens a bordo, este senhor comandou uma das caravelas desta frota.”
SEGUNDA GERAÇÃO EM TERRAS BRASILEIRAS
“O falecimento de Maria Hygena, deixou o capitão Thomé muito desolado. Ela foi a sua leal esposa e companheira por mais de meio século e, mesmo com seus 73 anos de idade, mostrava ainda muita vida, notadamente pelo seu porte esguio e seus enormes olhos verdes, que através do brilho forte, destacava a imagem de sua presença como esposa e mãe dedicada.
Possuía uma personalidade pacificadora e um grande senso de justiça, qualidades que sempre a notabilizaram, frente às contendas em que se via envolvido seu marido, Capitão Thomé Pires Cerveira. Seja como revolucionário ou empenhado na causa da consolidação das fronteiras do império do Brasil e na unificação da província Riograndense, ele estava sempre envolvido em constantes movimentos revoltosos, reminiscências da revolução Farroupilha, que perduraram até mesmo depois do começo do século XX.”
“Narciso Pires Cerveira e José Pires tiveram atuação nas campanhas legalistas no começo do século XlX, defendendo o império contra os revolucionários farroupilhas. Porém, com o surgimento dos ideais separatistas liderados por Bento Gonçalves, Onofre Pires e outros, colocaram sua tropa de provisórios a serviço dos Farroupilhas, defendendo as vastidões dos campos de baixo da serra. Sempre que a ordem era restabelecida, voltavam para suas propriedades, onde novos preparativos eram feitos para reorganizar o arsenal e descanso da tropa.”
“Foi neste agitado período de beligerância que os primos Thomé e Ernesto viveram suas infâncias e, de certo modo, participaram dos acontecimentos estando na retaguarda, com as lidas em todas as frentes dos trabalhos das fazendas.
Terminada a revolução Farroupilha, os então ainda jovens Thomé e Ernesto recebiam uma educação cuidadosa, de acordo com os costumes culturais trazidos de tempos imemoráveis. O padre da da freguesia da Conceição foi o principal artífice nesta empreitada, ensinando as letras, a matemática, as leis constitucionais e a fé cristã, que foram a base sólida da carreira de defensores da pátria, na campanha da guerra do Paraguai. Ali tiveram destacada participação, recebendo as patentes de oficiais da guarda nacional e do exército de sua majestade imperial.”
“O capitão Thomé Pires Cerveira e o seu primo, tenente Ernesto Pires, retornaram da guerra, depois de terem permanecido por três longos anos nos campos de batalha da mais hedionda e sanguinária guerra do sul da América. Os jovens veteranos tinha deixado mulher e filhos antes de partir para a guerra e, ao retornarem, apresentavam um amadurecimento profundo."
A CRUELDADE DA GUERRA
“Homens como Thomé e Ernesto foram na guerra do Paraguai acostumados às práticas de crueldades arbitrárias e repugnantes nos campos de luta. Tinham como o código de guerra, trazido das batalhas de Cerro Corá, a prática do extermínio de seus indefesos prisioneiros. Os quais, após cavarem enormes valas, eram colocados de pé, e em filas, rente aos valetões cavados, com as costas viradas para os mesmos, de mãos amarradas para trás, despojados de suas roupas, para que ficassem atentos ao olhar os seus derradeiros momentos.
Uma carga de cavalarianos, brandindo espadas, arremessavam-se em disparada contra os infelizes, na evolução das lâminas, por movimentos marciais, ao som de gritos histéricos, praticavam uma sanguinária degola em massa, e nos estertores da vida, os corpos iam caindo diretamente para dentro das valas. Depois, muitas vezes ainda com vida, eram cobertos com terra.”
“Tinham por hábito deixar sempre um prisioneiro vivo, assistindo aquela atrocidades, para receber um castigo bastante cruel, mas que ainda o deixasse vivo para ser solto e mandado embora para contar tudo aos outros soldados inimios. Servindo de exemplo a não mais retornarem por aquelas bandas com a missão de saquear propriedades acobertados por alguma facção revolucionária.”
“As crueldades eram alimentadas por uma escala sem limites, crescendo na medida em que outras iam acontecendo ao sabor de uma ferocidade incontrolável, consumindo, aos poucos, o sentimento e razão para dar lugar a um ser hediondo. Na verdade, Thomé e Ernesto foram homens forjados na coragem dos pioneiros desbravadores, cujos valores de bravos combatentes ficou demonstrado nos renhidos combates da guerra do Paraguai, onde conquistaram o respeito e o reconhecimento de seus comandantes pelas lideranças de ambos no cumprimento de dever. Ao retornar da guerra reorganizaram um grupo que formava pequena força provisória, remanescente do tempo de seus pais, Narciso e José, cujos feitos fizeram a história de nossa ancestralidade.”
“Quando Thomé partiu para a guerra do Paraguai os filhos mais velhos, Maria Antônia já era mocinha, Paulina, Paulino, Vital e Gentil, eram meninos. Após o seu regresso da guerra é que nasceram Adelaide, Leôncio e Amadeu.”
ADMINISTRAÇÃO FEMININA
“A fazenda, então, ficou entregue totalmente às ordens de Maria Hygena, que era assessorada pelos filhos mais velhos. Muitos agregados e peões faziam parte da pequena tropa de provisórios comandada por Thomé e Ernesto, que os mantinham sempre bem adestrados, prontos para qualquer eventualidade, muito comum naquela época.”
“Um novo tempo estava nascendo para a população de escravos da sesmaria da Conceição, da fazenda do Cadeia, situada à margem esquerda do Arroio cadeia. Sinhá Maria Hygena e seus filhos se mobilizaram com fervor para desincumbir-se das tarefas de organização. Coisa que, até então, lhes era desconhecida.”
“Na margem direita, na fazenda do Cafundó, sinhá Fermiana, com as filhas Constância (Tancinha), Etelvina e Maria Amália, que ainda era pequena. Saturnina, Lauro e Alípio ainda não eram nascidos. Elas faziam o melhor que podiam, buscando no apoio dos mais dedicados escravos, a ajuda de que tanto precisavam. O que mereceu maior destaque foi a fazenda do Cadeia, dadas suas condições agropastoris de bastante expressão, pela diversificação de atividades que a distinguia.”
“Nos dois anos e meio em que as fazendas estiveram sob o comando feminino, o que prenunciava grandes dificuldades, tornou-se talvez, os anos mais produtivos que as fazendas até então haviam conhecido. Boas safras em todas as frentes de trabalho, eram conseguidas. Não porque o tempo era favorável, mas sim porque uma nova ordem de valores humanísticos fora empregada, calcadas pela fé cristã, desde muito adormecida no berço da hipocrisia das aristocracias decadentes.”
“Fermiana e seus filhos, movidos por instintos nobres herdados de suas origens distantes mantidos sempre vivos nos genes do espírito, sem planos preconcebidos, substituiu o tronco do terror pela compreensão e o diálogo, A chibata do desespero, pelo carinho e amor. A solitária implacável, por um novo conceito de esperanças até então confundidos por uma liberdade abstrata. Os escravos trabalhavam com ardor, a felicidade corria solta pelas duas fazendas. As sinhás Fermiana e Maria Hygena, administravam o com pulso firme, mas sem métodos cruéis. Apenas aplicavam a justiça com equilíbrio sabedoria.”
“Todos recebiam as determinações das casas grandes, com respeito e obediência indo, as vezes, além de suas obrigações rotineiras. Esse frágil sentimento de liberdade era sentido por todas as faixas de idade, Até mesmo os velhos escravos produziam com fervor. A distribuição da fartura que abarrotava os paióis de produtos oriundos das generosas safras, era feita com harmonia. Porém, os suprimentos destinados às senzalas eram fartos e com a mesma qualidade para todos.”
“Os cânticos das noites de lua cheia, em volta das fogueiras, passaram a encher-se de um novo ritmo, com acordes mais alegres, prenunciando um novo tempo de boas perspectivas e de liberdades, sem os nefandos grilhões que deixaram profundas marcas a perdurar até nossos dias.”
RETORNO CRUEL
“Mas, com o regresso dos senhores das fazendas, tudo voltou a ser como antes. Talvez até pior, por duas razões elementares:
Primeiro, porque foi que pela primeira vez que os escravos tinham conhecido, por algum tempo, um modo diferente de vida, de forma que puderam descobrir e estabelecer as diferenças,
A outra, foi que aquilo que era ruim, agora poderia ficar insuportável devido às neuroses torpes da guerra a explodir nos momentos de ira desenfreada dos feitores. A sensibilidade despertada, confronta-se com a insensibilidade que, realimentada na cegueira do poder, gera nos primeiros momentos, a horrorosa rotina de sofrimentos, que pareciam pesadelos a perseguir e atormentar o tempo todo. A ideoloia dos senhores baseava-se na ideia de que era preciso punir, para que a disciplina e a ordem não fossem negligenciadas.”
“Os Pires daquele ramo familiar, eram conhecidos como “ os Pires dos brabos “. Tinham fama de brigões e irascíveis, não muito amistosos em suas relações e de amizade e também não eram afeitos em trocar favores. Porém, somente reagiam quando afrontados nos limites de seus direitos. Da mesma forma, cultuavam um refinado senso de respeito à privacidade de seus vizinhos, mesmo que fossem parentes”
“ Os dois heróis traziam no corpo as marcas profunda da guerra, Thomé tinha um ferimento de lança em sua coxa direita, resultando em uma cicatriz exposta, ferimento que não deixou sequelas em seus movimentos. Ernesto, um leve ferimento em seu ombro esquerdo, que lhe causou uma pequena cicatriz.”
“Em suas bagagens eles trouxeram a maturidade construída pelas grandes experiências vividas no campo de batalha, no aprendizado das artes militares e na fantástica realidade de cada momento, onde as decisões individuais representavam a maior garantia de sobrevivência. As suas personalidades tinham sofrido uma transformação diante das crueldades inevitáveis que ambos os lados impunham como preço nas derrotas e nas vitórias, ao sabor de comportamentos descontrolados movidos pelas explosões de ódios sem limites.”
Texto extraído do blog Incrível Segredo do Fantástico Aguigarto
baseado na obra de Duclece Pires Os Provisórios
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