domingo, 18 de maio de 2014

4036 - Memórias de um jovem da década de 1940

Esteira de Espumas
Lauro Pereira Guimarães
Foto: Arquivo Pessoal
O autor foi procurador geral de justiça do estado
Filho de rica família de Taquari, o autor dessa crônica mostra como eram a vida e os sentimentos dos jovens pertencentes à elite interiorana que tinham o privilégio de estudar em colégios da capital.  A descrição serve para alguns jovens caienses e montenegrinos que, assim como esse moço de Taquari, estudavam em Porto Alegre, tendo de residir lá e vindo para a casa, de vapor, somente nas férias e em feriados prolongados.






Jamais conseguimos saber, nós, estudantes secundários dos anos 40 e 50 dos Vales do Taquari/Jacuí, qual momento nos causava maior alegria: se o começo das férias escolares em Julho e Dezembro, tempo de rever pais, irmãos, amigos, namoradas, ex-colegas do Primário, ficados na cidade da infância, ou se o reinício buliçoso das aulas, na Capital, onde iríamos reencontrar companheiros do Ginásio, Escola Normal, do Colégio e de outros cursos de nível médio, sem esquecer os vistosos cadetes da EPPA, no festivo recomeçar do ano letivo, sob a orientação segura e severa, mas capaz e devotada, dos inesquecíveis mestres de então. (Aos moços de hoje é necessário explicar que nossa terra, e todas as cidades de seu porte, só dispunham, então, de curso primário).

Decidimos que ambos os momentos eram igualmente emocionantes, e os aguardávamos em alvoroço.
O que sabíamos, com “certeza científica”, eram as datas das esperadas viagens à metrópole e a volta à terra natal, no início e fim das férias escolares, a bordo dos tranqüilos, pachorrentos navios da Cia. Arnt, subindo e descendo, sem pressa, o curso de nossos rios Taquari e Jacuí.
Pareceria, nessas ocasiões, que todos os jovens das cidades ribeirinhas haviam marcado encontro nos acolhedores barcos do velho Jacob e do “seu” Leopoldo, heróicos pioneiros de nosso transporte fluvial. Juventude saudável, bonita (tirante eu, é claro), razoavelmente bem-comportada, tomava de assalto, em cada porto, os navios de passageiros, enchendo-os de vivo colorido e ruidosa alegria.
O último domingo das férias de verão era a data culminante desse calendário de emoções: partia de Taquari, logo após o meio-dia, o confortável paquete “Porto Alegre”, capitânia da frota da Cia. ARNT, devolvendo à Capital e às salas de aula a mocidade do Vale, bronzeada pelo sol dos banhos de rio, confiante em seu futuro, cheia de sonhos e esperanças.
Sonhos, nossos; esperanças de nossos pais, que pagavam a conta…
Das cidades do alto curso – Lajeado, Estrela e outras – jovens estudantes chegavam ao nosso porto, em barcos menores, disputando com os “donos da casa” (assim nos considerávamos, pois não?) os espaços nobres do barco principal, que nos abrigava a todos, proporcionando amizades novas. E, orgulhoso de sua carga preciosa – nós, o “Futuro da Pátria” – o garboso navio apitava gravemente, anunciando a partida, enquanto, no cais açoriano, dezenas de mãos, e algumas lágrimas, correspondiam ao aceno e à emoção dos que seguiam viagem. A Capital parecia tão distante, e a separação tão pesada…
Pelo Barreto, General Câmara, Triunfo, São Jerônimo, Colônia Penal, Charqueadas, Granja Carola, o singelo atracadouro da Mirabela, – onde sozinha e loira, embarcava minha amada – os trapiches enchiam-se de gente, em trajes domingueiros, para o adeus comovido.
E, enquanto jovens passageiras, apoiadas às mãos de rudes marinheiros, sob o olhar atento do Comandante, cruzavam temerosas a balouçante prancha de embarque, nós, mancebos imberbes, em pose de galãs precoces, buscávamos rostos conhecidos de outras viagens, ou avaliávamos, com olhar certeiro, as beldades que subiam a bordo, escolhendo mentalmente a que pretendíamos namorar no restante do percurso.
Éramos assim naquele tempo: ingênuos e presunçosos.
O namoro a bordo era, então, uma instituição oficial, com regras estabelecidas e acatadas: começava pelo olhar – o “flirt”, dizia-se naqueles idos – progredia no sorriso cúmplice, incentivador da abordagem tímida, tropeçava na insegurança do diálogo inicial, e consolidava-se, quase ao fim da viagem, no inocente, trêmulo toque de mãos – nossa glória maior!
Éramos assim naqueles anos: românticos e sonhadores.
Para os rapazes de nossa terra, a expectativa mais excitante estava reservada para o embarque, em certo porto intermediário, de umas belezas morenas, de olhos ardentes e tentadores, desinibidas (para a época), que fumavam ousadamente, estimulavam a aproximação masculina e, na copa, desprezavam o inocente guaraná ou a pacata gasosa, causando com isso sérios danos à nossa magra bolsa de ginasianos afoitos, metidos a dons juans náuticos — ainda fuzilados pelo olhar duro das recatadas conterrâneas, titulares costumeiras de nossas atenções nos salões taquarienses e, momentaneamente desprezadas…
Ao cair da tarde, a Capital aproximava-se, a viagem chegava ao fim. Era a hora do adeus aos afetos nascidos a bordo, das promessas de reencontro certo em viagem próxima, na Páscoa, talvez. E, enquanto o par, debruçado à amurada do barco, mãos entrelaçadas, mirava em silêncio as margens tufadas de verde, aves aquáticas, em vôos rasantes, pareciam saudar os namorados.
Deixando atrás de si uma esteira de espumas, banhada pelos tons cambiantes do sol que morria, o valente navio, tocado a toda máquina, abria na superfície das águas sulco profundo, avançando, avançando sempre, na direção de seu destino.
Como nossas vidas.

Crônica divulgada pela coluna Almanaque Gaúcho, de Ricardo Chaves, no jornal Zero Hora

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