sexta-feira, 12 de outubro de 2018

5423 - O suicida covarde

A barca do rio Caí, até o ano de 1970, era o único meio de veículos 
atravessarem o rio na cidade de São Sebastião do Caí


Conheci quando criança um cara, que tinha crises psicóticas e, nestas crises, tinha sentimentos suicidas. Mas era um suicida patético porque não tinha coragem em se matar. Somente arranjava o cenário completo para amedrontar todos ao seu redor, mas o desfecho de sua intenção nunca acontecia. 
Eu era criança na época, mas convivi com estes seus momentos porque ele era casado com uma parente nossa e, portanto, era amigo do meu pai. E meu pai sempre dizia que ele nunca iria se matar porque era muito covarde para isso.
Uma destas cenas que ele protagonizou foi em Harmonia, lugar onde eu morava e por onde também passa o rio Caí. Só que lá o rio faz uma curva de quarenta e cinco graus, bem dizer um cotovelo, barrado por um paredão de basalto de mais de quarenta metros de altura. E ali, nesta curva as águas são profundas e várias pessoas já morreram afogadas presas entre os galhos das árvores que foram se avolumando em seu poço. 
E justamente em cima daquele paredão, certo dia, o José (nome fictício) foi fazer acampamento para uma hora se decidir jogar lá de cima para a morte. Ficou uma semana inteira com sua psicose corroendo seus miolos, criando coragem para se jogar lá de cima. Parentes dele levavam comida e água para ele lá, já que se negava a sair dali. E toda vez em que alguém chegava lá com ele, se posicionava perigosamente na beirada do perau ameaçando se jogar. Mas sem coragem, não se jogou. Depois daquela semana, com ele dormindo no relento, sem banho, sujo fedendo, chamaram meu pai para tentar dissuadi-lo da ideia de se jogar lá de cima.
E meu pai conseguiu mudar a ideia dele, voltando junto com ele até nossa casa, tomando um banho e pegando roupas emprestadas do pai para se vestir. No dia seguinte foi embora e voltou aqui pro Caí, onde ele morava. Durante meio ano, era verão, ele ficou normal, seguindo sua vida.
Eis que, no inverno, friozão, ele veio visitar meu pai. Como sempre passou a noite conosco, com sua tosse asmática e seus roncos leônicos, acordando a todos nós, crianças, temendo que ele viesse nos amedrontar. 
No dia seguinte levantou, tomou café e pegou o ônibus para voltar ao Caí. Na época a travessia era feita na barca que havia. O ônibus desembarcava os passageiros na barranca do rio e seguia viagem até Montenegro. José estava entre eles. Quando todos estavam sobre a barca ela foi puxada para a outra margem no braço de 4 homens que puxavam com paus que tinham um corte, encaixando num cabo de aço que atravessava o rio entre margens
. E assim deslocavam a barca. 
Chegando no meio do trajeto, rio de águas sujas, havia chovido, José tirou primeiro seu sobretudo, dobrou e colocou no piso da barca. Depois tirou seu chapéu de feltro e deitou de cabeça pra cima sobre o sobretudo. Tirou o óculos fundo de garrafa, era míope, dobrou e colocou dentro do chapéu. Então, olhando para a torre da igreja matriz, abanou e gritou: - Adeus meu São Sebastião do Caí!
E, tchibum, se atirou nas águas barrentas afundando que nem um saco de batatas. Um barqueiro vendo isto, largou a madeira e se atirou atrás do homem naquelas águas geladas, trazendo-o de volta para a barca. Os dois tiritando de frio, o barqueiro deu um tabefe na cara do José e gritou irado:
- Da próxima vez em que se jogar não o salvo mais, vou deixá-lo se afogar.
E José, choroso reclamou:
- Mas era isso que eu queria!
E o barqueiro berrou de volta:
- Então faz isso um dia sozinho e não numa barca cheia de gente!

Texto de Pio Rambo

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