quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

5102 - O Rolls-Royce da presidência da república e o senador Alencastro Guimarães

A história da denúncia feita pelo senador Alencastro Guimarães sobre a compra de automóveis Rolls-Royce foi melhor esclarecida por Lira Neto, autor da sua recente e excelente biografia de Getúlio Vargas. O escritor baseou-se no site Maxicar, portal especializado em carros antigos, que esgota o assunto de modo cabal, com todos os detalhes e minúcias possíveis. É um material muito interessante, que reproduzimos aqui, parcialmente, para esclarecer o episódio  envolvendo o caiense Alencastro Guimarães.

A COMPRA DE QUATRO AUTOMÓVEIS

E

Em 28 de julho de 1953, o Senador Alencastro Guimarães (PTB) denunciou, da tribuna do Senado, a emissão de uma licença de importação para a compra de quatro automóveis junto à Rolls-Royce e não somente dois para a presidência; segundo ele, faziam parte de um negócio onde os dois “extras” seriam vendidos no mercado negro por uma firma particular.
O Senador condenava não só o “esquema”, como também a compra dos novos carros para a presidência, alegando que não era momento para se efetuar tal compra, diante das dificuldades do Brasil no tocante às importações de artigos de luxo.
Na verdade, a própria confirmação da encomenda que foi encaminhada ao importador era estranha uma vez que deixava claro que os carros da presidência tinham que seguir as especificações, porém pedia outros dois automóveis para poder escolher melhor...
Trechos deste curioso ofício são muito importantes para que possamos entender as dúvidas do senador.
“ ... 2. A Presidência da República têm necessidade de dois (2) automoveis com as seguintes caracteristicas:
a) Um (1) automovel modelo “Enclose Lomousine”;
b) Um (1) dito do mesmo modelo, conversivel, com capota de lona;
c) Côr preta;
d) Estribos laterais reforçados, devendo suportar o pêso de três (3) pessôas;
e) Parachoque anterior e posterior reforçados, com uma chapa de aço entre os mesmos e a carroceria, servindo como estribo, devendo suportar o pêso de duas (2) ou mais pessôas.
3. Afim de possibilitar a escolha dos automóveis entre mais de um modelo, deverão ser apresentados pelo menos quatro (4) automoveis, ficando ressalvado que à Presidência só interessa a aquisição de duas (2) unidades, com as caracteristicas acima enumeradas.
4. Os automoveis em fóco, no caso de ser necessária a importação, deverão vir consignados à Presidência da República. ...”
Interessante refletir sobre a real necessidade de se trazer quatro automóveis se só interessavam dois tão bem especificados, porém existe ainda uma segunda versão contada pelo Sr. Gastão onde os outros dois automóveis seriam também utilizados na presidência, mas as pressões políticas fizeram com que o governo resolvesse se desfazer destes dois outros Rolls-Royce.

A SITUAÇÃO CÂMBIAL
Na década de 50, logo após o término da II Guerra Mundial, o país estava com uma demanda reprimida de automóveis e caminhões, devido à falta destes produtos no mercado internacional por conta do esforço de guerra dos países tradicionalmente exportadores de veículos.
Neste tempo, a reposição e renovação da frota nacional atingia valores muito elevados, prejudicando sobremaneira a balança comercial. Para que se possa ter uma idéia de valores de importação, só de caminhões, ultrapassava a conta de importação de petróleo e trigo juntas!
Já em 1948, foi instituído um regime de importação que exigia a emissão de uma “licença prévia” (lei 262 de 23/2/1948), visando controlar a entrada de bens importados no país.
Seguindo esta mesma linha, no segundo período presidencial de Getúlio Vargas, quando era então presidente do Banco do Brasil o Sr. Ricardo Jafet (presidente do Banco do Brasil, por indicação de Adhemar de Barros, até 12 de janeiro de 1953, quando se demitiu), foi criada a CEXIM – Carteira de Exportação e Importação do Banco do Brasil —, cujo objetivo era justamente exercer o controle do fluxo cambial através da restrição às importações, principalmente de artigos considerados de luxo que estavam inundando o mercado nacional. As importações de artigos de luxo aconteciam em detrimento do uso das reservas cambiais para reequipar a indústria nacional, as ferrovias, a frota de caminhões e outros setores produtivos da economia que necessitavam de equipamentos mais modernos.
Apesar do objetivo importante da CEXIM como controladora do fluxo do comércio exterior, os abusos não demoraram a aparecer pois, por estar este departamento nas mãos de poucos, o poder de conceder ou não as licenças de importação dependiam de muitos fatores, inclusive burocráticos. Segundo se dizia na época, o poder desta repartição se tornou um ótimo pretexto para o velho princípio de “criar dificuldades para vender facilidades”. Não tardou e a CEXIM se tornou uma grande geradora de escândalos e protestos por parte da imprensa e até dos políticos.
A situação era tão grave que foi criada em 10 de fevereiro de 1951 uma comissão de inquérito com o fim de esclarecer as diversas denúncias contra o sistema de licenças prévias que vinha sendo alvo de críticas desde sua criação no governo Dutra.

COMO “TRAZER” UM CARRO NOVO E AS CONTAS EXTERNAS
Nem tudo caminhava conforme exigia a difícil situação, pois, neste período, a sociedade brasileira assistia a um escandaloso comércio de automóveis de luxo, principalmente Cadillacs.
Os automóveis entravam no país de diversas formas, inclusive através do uso de passaportes de pessoas que passavam mais de seis meses fora do país. (cumprindo este prazo passavam a ter o direito de trazer tais automóveis como “bagagem”). Estes passaportes, de pessoas, nem sempre envolvidas diretamente na compra de veículos eram cotados por um mercado próprio que tratava de trazer os automóveis de luxo usando este “salvo conduto” para depois revendê-los a preços altíssimos.
A lei também era benevolente com outras parcelas minoritárias da sociedade já que podiam importar veículos livremente os congressistas, os militares e as repartições públicas. Não se pode esquecer também as embaixadas e consulados que repassavam os seus automóveis para brasileiros que circulavam com a famosa “4ª via de importação” e os documentos em nome do importador original.
Como agravante, as contas externas do Brasil com a Inglaterra, neste período, estavam passando por uma situação delicada, pois o Brasil devia àquele país cerca de £ 65.000.000 e esta dívida estava sendo rediscutida para que fosse feito um acordo de reescalonamento dos pagamentos. Tal acordo só foi finalizado em 1954, quando, então, houve a normalização das importações em Libras.

OS OUTROS DOIS AUTOMÓVEIS
No dia 1° de janeiro de 1953 foi embarcado no navio R.M.S. Highland Princess o primeiro dos dois automóveis encomendados pelo Major Ene; porém, neste mesmo navio e nesta mesma data estava sendo embarcado também um outro Rolls-Royce.
Tratava-se de um modelo Silver Wraith, de chassi normal, carroçaria Touring Limousine de cor preta, que já estava pronta para ser faturada em setembro de 1952, mas que ficou aguardando, não se sabe por qual motivo, o embarque do primeiro carro da presidência para também seguir rumo ao Brasil. Este era justamente um dos dois outros automóveis para a posterior escolha.
No dia 20 de janeiro de 1953 foi embarcado no navio R.M.S. Highland Monarch o outro Rolls-Royce fora das especificações presidenciais, também modelo Silver Wraith de chassi normal e carroçaria Touring Limousine, porém, desta vez, na cor cinza em dois tons.
Cada um destes dois automóveis custou £ 4.455 (o custo total com frete e seguro ficou em
£ 4.813 e £ 4.843 respectivamente) .
Finalmente, o modelo conversível foi faturado em 21 de janeiro de 1953 e embarcado no R.M.S. Highland Princess em 26 de março de 1953.

E AGORA, O QUE FAZER COM QUATRO AUTOMÓVEIS?
Segundo é relatado pelo Major Ene, quando da chegada do primeiro automóvel (a limousine fechada), em janeiro de 1953, “um grupo de amigos do Dr. Getúlio Vargas resolveu oferecer-lhe o automóvel, para seu uso particular e oficial”. Segundo o importador, Sr. Gastão, este grupo de amigos era liderado por Euvaldo Lodi, deputado e presidente da Confederação Nacional da Indústria naquele momento.
Segundo depoimento da Sra, Alzira Vargas do Amaral Peixoto, o mesmo procedimento foi adotado quando da chegada do segundo automóvel (a limousine aberta), o que não é confirmado pelo Sr. Gastão.
Os outros dois que foram o motivo principal das considerações do Senador Alencastro Guimarães foram taxados e colocados à disposição da importadora que posteriormente os revendeu conforme já comentamos.
Desta forma, os quatro automóveis permaneceram no país, sendo que os dois presidenciais foram faturados e emplacados em nome do presidente Getúlio Vargas “tendo sido tomadas as providências junto aos órgãos competentes”.
Estando o caso de certa forma resolvido, resolveu o presidente que os automóveis deveriam ter características de carros oficiais, tanto para uso do presidente, como para efeito de manutenção. O custo de manutenção dos presentes era obviamente alto...
Segundo consta, o presidente tomou esta deliberação pois tinha a intenção de doar à presidência da República os automóveis no término de seu mandato. Neste momento, o Chefe do Gabinete Militar, General Aguinaldo Caiado de Castro, determinou que os automóveis fossem relacionados no Serviço de Transportes da Presidência da República inclusive emplacando-os com placas oficiais baixando-se assim, nos órgãos de trânsito, as placas particulares.

O PAGAMENTO DOS AUTOMÓVEIS
Após a denúncia do Senador Alencastro Guimarães, o Congresso requisitou ao Ministério da Fazenda esclarecimentos sobre a importação dos automóveis. Estes esclarecimentos, na forma de um ofício da Alfândega do Rio de Janeiro e de um ofício do General Caiado de Castro, foram encaminhados à Câmara dos Deputados pelo ministro da Fazenda.
Estes documentos revelam que:
1. As licenças de importação foram emitidas pela CEXIM em 27 de março de 1953. (Esta é a mesma data que consta do documento de propriedade do automóvel comprado pela empresa Imobiliária Santa Therezinha como será visto mais adiante);
2. Os quatro automóveis foram desembarcados na alfândega do Rio de Janeiro com isenção ampla de direitos e taxas, nos termos do artigo 11, inciso 1º do Decreto-Lei número 300 de 24 de fevereiro de 1938. (Regula a concessão de isenção e redução de direitos aduaneiros.
3. Os dois automóveis não presidenciais (“normais”) foram colocados à disposição da empresa importadora e sobre eles foram cobradas todas as taxas devidas (vide tabela abaixo). Desta forma os automóveis que entraram no Brasil por Cr$ 13.560,89 acabaram custando Cr$ 55.330,54 cada um!
4. A justificativa dada para a importação de quatro automóveis foi que, dos quatro, dois seriam escolhidos pela presidência; esta explicação, porém, não é convincente uma vez que, como dissemos, os automóveis presidenciais tinham características próprias para o fim a que se destinavam e que os outros eram absolutamente “normais”. (vide tabela anexa)
5. O pagamento dos automóveis foi realizado em favor da Rolls-Royce Ltd., London em 25 de novembro de 1952 através do crédito de número 52.436 gerado pelo fechamento do câmbio que foi feito no dia 24 pelo corretor Jorge de Souza Gomes no Banco Lowdens S/A (a sede deste banco era na Av. Presidente Vargas, 290 – RJ). Desta forma, a importadora Companhia Comercial de Motores e Veículos pagou £ 24.000 pelos automóveis. Eis a prova final de que os automóveis não foram presenteados ao Brasil por ninguém.
Abaixo podemos verificar o preço final, em cruzeiros, pago por cada automóvel, tendo como base as informações prestadas ao Congresso pelo Ministro da Fazenda.

 
Limo aberta
Limo fechada
"normal" preta
"normal" cinza
Preço no porto do Rio (em Cr$)22.258,9917.292,0013.560,8913.560,89
Direitos de importação0,000,0014.227,5014.227,50
Adicional de 10%0,000,001.432,801.432,80
Emolumentos Consulares0,000,001.722,251.722,25
Previdência Social 2%0,000,005.088,805.088,80
Imposto de consumo0,000,0019.296,5019.296,50
Imprensa Nacional0,000,001,801,80
Preço total (em Cr$)22.258,9917.292,0055.330,5455.330,54


O SUICÍDIO DE VARGAS
Após os acontecimentos da Rua Tonelero, o presidente Vargas comete o suicídio em 24 de agosto de 1954. Aí se inicia outra fase na história dos Rolls-Royce

A tal doação planejada pelo presidente nunca chegou a se concretizar e conseqüentemente os automóveis continuaram a pertencer ao cidadão Getúlio Vargas. Após sua morte, seus herdeiros reclamaram ao governo a entrega dos automóveis que lhes pertenciam.
Para o governo, a situação era bastante delicada, pois ninguém já se lembrava do caso e os automóveis, principalmente o conversível, já eram bastante conhecidos e faziam parte da história do país.
Já em dezembro de 1954, o Coronel Auriz Coelho e Silva, novo Chefe do Pessoal da Presidência da República no governo Café Filho, começa a procurar entender a história dos automóveis para que pudesse ser feita a entrega dos mesmos à família ou, ainda, se discutir um acordo que preservasse os automóveis para o uso da presidência.
Não foi uma negociação fácil pois o caso só seria resolvido após junho de 1957, já no governo Kubitschek, quando a limousine fechada acabou sendo entregue para a família em troca da permanência da conversível no Serviço de Transportes da presidência.
Neste período de negociações, os automóveis continuaram sendo usados normalmente pelo governo e o último visitante estrangeiro a usar a limousine fechada foi a senhora Berta Craveiro Lopes, mulher do presidente de Portugal, General Craveiro Lopes, durante sua visita ao Brasil em junho de 1957. Após este acordo, os automóveis passaram a ter destinos bem diferentes.


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